18 de Março de 2011

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Agora eu decidi: só morto me levam daqui. Juro por Santa Bárbara, só morto.

Secreta
(Vê a faca na mão de Zé-do-Burro.) Tome cuidado, chefe, que ele está armado! (Observa a atitude hostil dos capoeiras.) E essa gente está do lado dele!

Coca
Estamos mesmo. E aqui vocês não vão prender ninguém!

Delegado
Não vamos por quê?

Manuelzinho
Porque não está direito!

Delegado
Estão querendo comprar barulho?

Coca
Vocês que sabem...

Delegado
Não se metam, senão vão se dar mal!

Secreta
E é melhor que se afastem.

Rosa
Zé!


Me deixe, Rosa! Não venha pra cá!
Zé-do-Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja. Sobe um ou dois degraus, de costas. O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da praça. Zé-do-Burro corre e abaixa-se para apanhá-la. Os policiais aproveitam e caem sobre ele para subjugá-lo. E os capoeiras caem sobre os policiais para defendê-lo. Zé-do-Burro desaparece na onda humana. Ouve-se um tiro. A multidão se dispersa como num estouro de boiada. Fica apenas Zé-do-Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre. Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto. 

Rosa
(Num grito.) Zé! (Corre para ele.)

Padre
(Num começo de reconhecimeto de culpa.) Virgem Santíssima!

Delegado
(Para o Secreta.) Vamos buscar reforço. (Sai seguido do Secreta e do Guarda.)
O Padre desce os degraus da igreja, em direção do corpo de Zé-do-Burro.

Rosa
(Com rancor.) Não chegue perto!

Padre
Queria encomendar a alma dele...

Rosa
Encomendar a quem? Ao Demônio?

O Padre baisa a cabeça e volta ao alto da escada. Bonitão surge na ladeira. Mestre Coca consulta os companheiros com o olhar. Todos compreendem a sua intenção e respondam afirmativamente com a cabeça. Mestre Coca inclina-se diante de Zé-do-Burro, segura-o pelos braços, os outros capoeiras se aproximam também e ajudam a carregar o corpo. Colocam-no sobre a cuz, de costas, com os braços estendidos, como um crucificado. Carregam-no assim, como numa padiola, e avançam para a igreja. Bonitão segura Rosa por um braço, tentando levá-la dali. Mas Rosa o repele com um safanão e sugue os capoeiras. Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira. Intimidados, o Padre eo Sacristão recuam, a Beata foge e os capoeiras entram na igrega com a cruz, sobre ela o corpo de Zé-do-Burro. O Galego, Dedé e Rosa fecham o cortejo."

(Dias Gomes, O Pagador de Promessas, 169-172)

Esta citação é da última parte da peça, e ao ler, eu fiquei muito aborrecido com o assassinato de Zé-do-Burro. É realmente "Um dos mais empolgantes desfechos do teatro brasileiro contemporâneo - e universal," como diz na sinopse da capa. Este trecho mostra o contraste e oposição entre as autoridades da época, tanto eclesiásticas quanto do governo, no Brasil, e o povo comum. É um forte comentário social. As autoridades querem tanto o controle sobre o povo que acabam piorando tudo. Zé-do-Burro foi um simples camponês que tive a fé de fazer uma promessa à Santa Bárbara, e a lealdade de cumpri-la, não se importando com o custo. No entanto, o Padre (representando as autoridades eclesiásticas) e o Delegado e Secreta (representando as autoridades do governo) pensam que ele vai levar o povo em algum tipo de revolução se ele completar sua promessa. Mas os leitores sabem que isto não é o propósito dele. Ele só quer pagar sua promessa e ir embora, sem nenhum estardalhaço.
E uma coisa interessante é que se o Padre tinha deixado ele entrar na igreja com sua cruz primeira coisa da manhã, quase ninguém saberia. Ele podia pagar sua promessa, voltar para seu sítio, e tudo estaria terminado. Então o padre podia fazer qualquer coisa que quisesse com a cruz porque Zé-do-Burro voltaria e os dois nunca se veriam mais. Mas em vez disso, a situação fica se enrolando durante o dia inteiro, incluindo mais e mais pessoas até no final Zé-do-Burro é assassinado durante a briga entre ele, os policiais, e os capoeiras. Por causa deste desejo para controlar o povo que estas autoridades têm, em vez de deixar Zé-do-Burro em paz, eles acabam matando-o desnecessariamente. Bem, "desnecessariamente" seria uma atenuação muito grande. Os leitores somente podem esperar que alguma destes personagens aprendeu alguma coisa, e vai mudar a maneira de pensar para não ter outro episódio como este.

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